Nasceu naquela casa, após longas horas de um trabalho de parto exaustivo; rebentou para aquela residência, não para o mundo, como se conta sobre uma nova criança recém-chegada. E, a partir de então, foi lá mesmo que permaneceu.
Tomava banho de sol pelo reflexo da janela; ouvia o choro e gritos de outras crianças da cadeirinha na sala e as visitas médicas aconteciam sempre nesse mesmo endereço. O próprio doutor havia proferido a sentença, segundo contava o pai. E também a tia, a vizinha, o farmacêutico e a governanta que dela cuidava desde que sua mãe partiu sem despedida, todos pensavam da mesma forma e estava dado o veredicto: ela jamais poderia sair de casa.
De maneira que nunca ultrapassou a fronteira da porta de entrada. Quando menina, até esforçou-se, esboçou planos de fuga, driblou visitantes que deixavam lacunas à entrada, tentou mesmo convencer os professores que a assistiam, ensinando sobre as artes, matemática, letras e generalidades. Mas nada conseguiu.
E dezessete anos voaram, como voam números perdidos. A menina curiosa tornou-se, assim, a menina desbotada.
Da vida lá fora muito conhecia através do que a vista lhe entregava: sabia que as flores cheiravam a alegria; que, além de estrondos, os carros alardeavam os homens, com sua urgência e egotismo; sabia que o vento sacudia diferente os cabelos das meninas que passavam extasiadas com sorvetes nas mãos, provando os sabores uma da outra; sabia que os pássaros cumpriam sua missão religiosamente ao gorjearem seu ‘bom dia’ pela manhã. Tudo isso a fazia sentir-se ora meditativa, ora satisfeita, ora acomodada.
Mas a menina estreita também não sabia de muitas coisas: não sabia que a chuva podia lavar todas as dúvidas do corpo numa tarde de verão; não sabia que as pessoas corriam e, nem sempre, estavam apressadas, pois muitas vezes o faziam sem olhar para trás, pelo prazer de serem livres; não sabia que se trocavam olhares nos bancos das praças, nas matinês, nas festas comemorativas e que isso poderia fazer o coração acelerar como numa febre; não sabia que não se encontrava a paz somente ouvindo as músicas favoritas, trancada no quarto e que ela podia estar ali num bar, num cemitério, na floricultura, na loja de sapatos, ou quando alguém estava sentado à calçada, fazendo bolhas de sabão.
Pouco reclamava, pois nada lhe faltava. Se visse nos comerciais à televisão algo que desejasse, no dia seguinte, feito mágica, aquilo caia em suas mãos.
– Pai.
– Sim…
E a menina acanhada disse uma hora qualquer, novamente, sem rodeios:
– Será que um dia eu poderei frequentar uma faculdade?
E ele a fitou com os olhos moídos:
– Claro, minha pequena, um dia poderá…
– Quando?
E, dessa vez, foi o telefone que tocou. Outra vez foi a campainha, ou foram interrompidos pela hora do jantar ou do noticiário.
Só que um dia ela não quis saber da televisão. Ficou ali na sua brecha, paisagem do mundo, olhando o vendedor que trespassava a rua. E, como de costume, escondeu-se quando percebeu que ela a havia notado. Ficou à espreita durante minutos, enquanto também ele expectava para reconhecer quem, à distância, estava a observá-lo. E o mesmo aconteceu no dia seguinte e nos outros. No quinto dia, ela não se ocultou mais e ambos, o andante zeloso e a menina não mais insípida, ficaram dividindo uma conversa sem palavras, baseada num dicionário que somente eles consultaram.
Naquela noite, a menina arrebatada decidiu que o brilho das estrelas reluziria em seu corpo e seria seu. Juntou roupas em um lençol, carregou de salgadinhos uma sacola e deixou para o pai um bilhete afobado. Preparou-se, dessa forma, para a fuga, lutando contra os anos que deixaria para trás.
Ele, o seu noivo de olhares, estava lá fora, aguardando sua chegada. De lá, jogou contra a janela aquela que tinha sido a maior pedra que encontrou, a fim de estilhaçar o vidro, pondo fim à barreira que os desunia.
O barulho despertou a vizinhança. Na casa, acorreram a tentar entender o que acontecia, em meio à desorientação da madrugada. Mas, com exceção do susto, nada aconteceu, o vidro continuou íntegro e o aspirante a raptor correu, sem nem olhar para trás. A menina esmorecida explicou, com a voz escassa:
– Ladrão. Era um ladrão!
Enquanto o pai recobrava-se do assombro e telefonava para a polícia, só a governanta reparou no lençol e na sacola, mas nada revelou. Nem comentou sobre o bilhete à mesa de centro, tratou logo de enfiá-lo por dentro da camisola e guardar somente para si a confidência das palavras que não deveriam ser proferidas jamais.
Através da janela, vejo as horas voando e nunca poderei alcançá-las. Peço desculpas se aqui vivi tempo demais. É hora de não olhar para trás. ”
[Texto via]: Papo de Fran
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