“Vamos lá, tudo bem, eu só quero me divertir...
Esquecer dessa noite, ter um lugar legal pra ir...” (Trecho da canção: Teatro
dos Vampiros – Legião Urbana)
• Adrenalina — hormônio produzido pelas glândulas suprarrenais, cuja secreção é aumentada em situações de estresse, ansiedade, perigo ou qualquer outra que deixe o corpo em estado de alerta e pronto para reagir.
• Compulsão — ato ou efeito de compelir; descontrole; realização de atividades sem premeditação e sem consciência das consequências; tendência à repetição; ação judiciária que obriga o indivíduo a comparecer em juízo.
• Objetivo — diz respeito a um fim que se quer atingir, e nesse sentido é sinônimo de “alvo” tanto como fim a atingir, quanto ponto de mira de uma arma ou projétil.
Eu me chamo João Roberto de Macedo, e considero-me um “adrenálico compulsivo objetivo”. Sou conhecido por todos como Johnny, O Rei dos Pegas, e estava prestes a completar dezesseis. Na maioria das vezes, me encontrava ao lado de meus loucos amigos: Julius, César, Janjão, Trakinas, e, por fim, Vicky. Mas, a partir de agora, vou relatar onde a minha vida começou a fazer sentido...
Era uma noite como tantas outras, regada a inúmeras doses de vodca e muitas tragadas no cigarro de maconha, e o motivo de toda comemoração se dava ao fato de eu completar mais um ano de vida. Como de costume, aquela seria outra noite de loucuras incontidas, finalizada com um grande espetáculo de automotores, em uma estrada próxima à lanchonete que sempre frequentávamos.
Eu não entendia como um bairro como o nosso — em Brasília, ou seja, na capital federal do Brasil — pudesse ter tantos nomes comerciais americanizados, e só me conformava com isso porque meu apelido, de certa forma, também o era. De fato, amava o apelido que ganhara desde os meus onze anos, logo após adquirir como herança do meu pai uma de suas preciosidades: o “Opala azul metálico”.
Lembrava-me de todo final de semana, quando meu pai se dedicava integralmente com amor pela máquina da qual eu sonhava um dia me pertencer, e que, agora, era minha maior e melhor preciosidade — e, assim como ele, também me devotava com carinho ao Opala, ao qual batizara como “Trovão”.
Também foi deixado de herança para minha mãe — Lourdes Maria Macedo, mais conhecida por todos como Dona Lourdes — algumas notas promissórias para serem quitadas, que teve como consequência a venda da nossa casa, fazendo com que fôssemos morar em uma residência menor, porém, ainda confortável.
Agora éramos uma família de dois, e muitas coisas haviam mudado. Encaixávamo-nos na classe média baixa. Com muito sacrifício, empurrávamos a vida com a barriga. Minha mãe costurava dia e noite, o que nos rendia o sustento maior da casa. Eu, por outro lado, estava no segundo ano do ensino médio, do qual pouco frequentava, ainda no período da manhã.
Eu ajudava mamãe financeiramente, pois trabalhava no período da tarde na oficina mecânica do senhor “João”. Com isso, conseguia alguns trocados para o sustento da casa e, também, para minha diversão. Contudo, onde lucrava uma grana maior, era no que eu sabia fazer de melhor... Nos famosos “pegas”, ou seja, nos rachas de carros. Por fim, eles me rendiam uma ótima grana, e, assim, seguia minha existência, muitas das vezes considerada como a vida de um “rebelde sem causa”.
— Johnny... Acorda! — Vicky gritou bem próximo ao meu ouvido.
Se havia uma coisa que me deixava louco da vida, era a falta de discernimento — e Vicky, com seu jeito despojado, sem noção e afoito, era uma garota que sabia me tirar do sério em questão de segundos.
Aquela era uma situação um tanto quanto estranha, pois Julius — meu melhor amigo — gostava de Vicky — meu affair problemático — que era apaixonada por mim — e eu, na verdade, nunca gostara de ninguém para valer.
Eu respeitava Vicky. De certa forma, me sentia bem ao seu lado. Na verdade, o que eu levava em conta eram as nossas loucas e tórridas transas, pois o sexo com ela chegava a ser sadomaso e surreal, deixando-me, por alguns momentos, a questionar: Como ela adquiriu tanta experiência com apenas dezessete anos?
— Johnny, você está surdo? — berrou Vicky, mais uma vez.
Respirei fundo para não responder grosseiramente, e meus amigos perceberam meu fio de paciência se esvaindo pelos ares.
— Eu não sou surdo, Vicky! — tentei ser educado, apesar da minha falta de paciência.
— Não é o que parece! Aliás, em que mundo você está? — rebateu, ainda aos berros.
Naquele momento, fechei meus olhos e clamei a Deus por sabedoria, para que, dessa forma, eu conseguisse tolerar sua falta de contenção nas palavras. Afinal de contas, ela se nomeava como minha garota. No entanto, eu a considerava como uma amizade mais que colorida.
— Brow, vamos nessa! Está rolando uma festa lá na colina, e nada melhor que aproveitá-la para comemorar seu aniversário... — Janjão anunciou qual seria o nosso roteiro.
Levantamos os seis em disparada, pois já havíamos pagado a conta da lanchonete. Então, entramos em meu Trovão. Logo, seguimos para a colina, que nem de longe chegava a ser um outeiro, mas, apenas, um grande terreno baldio abandonado onde aconteciam muitas festas proibidas, regadas a diferenciadas doses de bebidas alcoólicas e drogas... Desde as mais leves até as mais pesadas.
Minha turma — mais conhecida como Gangue TP, ou seja, Gangue The Puritans — foi presenteada com esse nome como uma afronta à sociedade (e, também, contra nossa cidade), que era repleta de falsos puritanos. Pensávamos como poucos, e diferente de muitos! Nós não concordávamos com a proibição de um pega no cigarro de maconha, pois tínhamos esse hábito quase que corriqueiramente. Também nos indagávamos sobre política, músicas, filmes, mulheres e diversão. Tínhamos nossa maneira de refletir sobre muitos assuntos, e, muitas vezes, discordávamos de tudo. Obviamente, três coisas nós seguíamos à risca:
Primeiro: Venceríamos todos os rachas.
Segundo: Não usaríamos nada mais que bebidas e maconha.
E, por fim, terceiro: Estaríamos lado a lado, fosse em qualquer
circunstância que a vida nos apresentasse.
— Chegamos, seus nóias! — Trakinas falou superanimado.
Trakinas era o segundo mais sem noção da turma, entregando a medalha de ouro para Janjão! Ele bebia e fumava demais da conta, deixando-nos sempre com a cara no chão, fazendo suas brincadeiras que, na maioria das vezes, eram motivos de piada do grupo. E o grande acontecimento baseava-se em seu desastroso show de strip-tease um tanto assustador — diga-se de passagem — pois ele sempre deixava à mostra seu físico acima do peso e, normalmente, vomitava sem pudor algum, não se importando com quem estivesse ao seu lado.
— Uhuuu! Isso aqui está pegando fogo... — exclamou Vicky, olhando a multidão que dançava um techno ensurdecedor.
Aquele era um estilo de música que eu pouco curtia, pois preferia ficar mais no meu estilo Classic Rock, o qual sempre apreciei ao lado do meu pai, desde criança.
— Vou curtir a noite, já que você está aí, com essa cara de merda! — provocou-me Vicky.
Eu apenas fitei-a com desaprovação. Mesmo me sentindo maluco de raiva com sua atitude infantil, ansiava por estar com ela ao meu lado assim que o relógio apontasse para um novo dia, presenteando-me com mais um ano de vida.
— Brow, você não tem a mesma paciência de antes com ela... — comentou Julius.
Assenti com a cabeça, dando-lhe a entender que o que acabara de dizer fazia sentido, deixando-o ainda mais animado com o caminhar de minha relação conturbada. Victória — mais conhecida como Vicky — era uma garota de dezessete anos, com um corpo escultural, cabelos encaracolados tingidos de loiro, e grandes olhos castanhos. Era filha única e morava com sua avó, pois seus pais haviam falecido em um acidente de carro, ainda na sua infância — e não saberia por qual motivo ela sempre nos acompanhava, acabando por fazer parte de nossa turma.
— Você realmente não gosta dela? — perguntou Julius, ansiando pela verdade.
Tentando ser correto e sem querer magoá-lo, pois ele era o meu melhor amigo, esquematizei uma reposta, sem rodeios. O certo seria dizer o quanto eu gostava de curtir a noitada ao lado de Vicky — e, também, quão adorava o sexo selvagem e prazeroso que ela me proporcionava.
— Brow, sempre deixei bem claro o que sinto pela Vicky! Gosto de estar ao lado dela, mas é apenas isso. — respondi, encarando-o de soslaio.
Julius seguia Vicky com o olhar, e ela sequer se dava conta de sua admiração. E assim continuou, com sua garrafa de cerveja em mãos, dançando sensualmente no meio da galera. De fato, ela agia daquela maneira para me provocar. No entanto, só conseguiu me chatear.
— Sabe, Brow, eu ainda espero encontrar aquela garota que me faça perder o fôlego! — comentei, no momento em que percebi Vicky se esfregando em um cara ridiculamente vestido como se estivesse no Hawaii.
Julius encarou-me, um tanto quanto esperançoso, e disse:
— E eu só espero um dia perder o fôlego com essa que tanto gosta de você! — provocou-me, dando-me um soco de leve no braço.
Vicky já passara dos limites naquele requebrado, que se parecia muito com a dança do acasalamento, e eu não queria pagar mais mico no meio da galera. Foi então que segui em sua direção, e, desastrosamente, segurei-a pelo braço, resmungando:
— Acho melhor você vir comigo! — arrastei-a para o outro canto, encarando o modelo do Hawaii.
Vicky arregalou os olhos, orgulhosa por ter conseguido o que queria: tirar-me do sério na frente de todos, e fazer com que acreditassem que eu era apaixonado por ela.
— Satisfeita? — perguntei, encarando-a.
— Não tanto quanto eu esperava... — ela contra-atacou.
— Opaaa, acho que vou me juntar ao resto do pessoal, próximo à fogueira. — Julius afastou-se, com o semblante feliz.
Eu a fitava com atenção e curiosidade, sempre me questionando o motivo de não conseguir me apaixonar por ela. Desde que a avistei pela primeira vez, não senti nada mais que tesão. Com o tempo, adquiri certo apego por sua pessoa, porém, ao conversarmos, percebia que não tínhamos quase nada em comum. Era uma garota legal, com ideias um tanto quanto loucas e, também, superdivertida. Na verdade, era o tipo de menina que qualquer cara gostaria de ter ao seu lado. Porém, esse cara não era eu.
— Nós já estamos há quase um ano juntos e você ainda não disse que me “ama”! — questionou-me.
— Vicky, que papo é esse? — indaguei, fingindo não compreender seus argumentos.
Após minha resposta vaga, ela enfureceu-se ainda mais, e, em questão de segundos, enfatizou:
— É disso que estou falando, Johnny! Você não gosta de mim como eu gosto de você... Está na cara. — fitou-me, aguardando pela declaração de amor.
Realmente, a recíproca não era verdadeira, e sempre deixei isso bem claro. No entanto, não queria estragar aquela noite, e muito menos magoar o seu coração.
— Eu gosto de você, de ficar com você... É isso! — tentei ser o mais natural possível com as palavras.
— Que horror, Johnny... Isso está parecendo mais com o refrão dos Tribalistas. — rebateu, ainda mais agressiva. — Seu insensível... Vá para o inferno! — murmurou, jogando-me na cara o que restara de sua bebida, rumando, em seguida, em direção à multidão.
— Merrrrrda! — bradei irritado.
O sangue subiu em minha cabeça, e minha vontade era de fazer o mesmo com ela, jogar o resto da minha bebida em seu rosto. Mas eu sabia que aquele não seria o modo certo de agir, pois, de certa forma, havia magoado-a com minha verdade — e isso me entristecia.
Diversas vezes, quando brigávamos, me sentia triste, pois era visível o quanto Vicky esperava de mim, e também era notável o quanto eu não me importava com ela. Em muitas de nossas discussões, tentava colocar o ponto final na relação que ela mesma criara em sua fértil imaginação. No entanto, tudo acabava em sexo, no meu quarto, ou dentro do Trovão.
Entrei no meu carro e abri o porta-luvas, em busca de uma pequena toalha. Logo, enxuguei meu rosto, e, instantaneamente, deparei-me com uma garrafa de vodca da noite passada, já pela metade, no banco de trás do carro. Dessa forma, minutos depois, encostei-me em meu Trovão, dando longos goles no destilado.
— Hei, cara, vamos pra perto da fogueira... Tem algumas gatas novas por lá! — sugeriu César, tentando me acalmar.
— Opaaa, dá um tempo só para eu colocar a cabeça no lugar! — respondi, fitando o nada.
— Johnny... Hoje não teremos pega, fomos informados que a estrada está sendo vigiada! — alertou-me César, seguindo, instantes depois, em direção à fogueira.
Eu precisava de alguns minutos sozinho. Estava nervoso e chateado ao relembrar o mico de minutos atrás, ao lado de Vicky, dando um espetáculo à parte, me deixando com cara de tacho. A última pessoa que eu queria ao meu lado, naquele momento, era ela.
Era estranho pensar em como deixei tudo chegar àquele ponto. Afinal de contas, se eu não gostava o suficiente dela... O que ainda estava fazendo ao seu lado? Essa era uma questão que me deixava impaciente. Eu me sentia um tanto quanto estranho, pois era o “menor maioral”, desejado por muitas garotas, que, em questão de minutos, completaria mais um ano de vida — e, ainda assim, continuaria sendo “o menor maioral”.
Ainda encostado no Trovão, cerrei as pálpebras e respirei fundo. Na verdade, estava feliz por não ter nenhum pega, pois não seria uma boa ideia. Minha cabeça rodopiava pela grande quantidade de cerveja e vodca que havia ingerido. Foi quando, ainda de olhos fechados, escutei um acorde de guitarra, seguido de um leve toque de piano — e não sei por qual razão, abri os olhos. Ao som daquela canção que tanto amava, da banda INXS, avistei-a.
— Beautiful Girl... Stay Whit Me! — e se fez ouvir o refrão da canção no instante que dei de cara com um anjo.
Estonteantemente linda em seu jeans surrado e seu suéter rosa... Deparei-me com aquela que me fez perder o fôlego. Um anjo de pele branca como a neve, olhos castanhos escuros, lábios delicados e finos, e cabelos compridos e lisos, também na cor castanho, um pouco abaixo dos ombros — e a banda INXS ainda era pano de fundo daquela deliciosa visão.
Eu pisei em ovos naquele momento, e meu coração acelerou de maneira irreal. Era impossível tirar os olhos daquela linda garota que estava a minha frente. Dessa forma, em questão de segundos, larguei a garrafa de vodca já vazia no chão, seguindo em passos curtos na direção do anjo.
— Aonde você pensa que vai? — Julius barrou-me, impedindo que eu alcançasse o anjo.
— Eu perdi o fôlego! — falei as palavras, fitando-a bem próxima de mim.
Tudo rodopiava confusamente, sempre focando na direção do anjo. A música ainda tocava em alto e bom som, e por alguns segundos, pensei o quanto aquela canção era perfeita para ocasião. Eu havia sido premiado com aquela visão divina, que, por sinal, estava tão perplexa quanto eu, também me encarando confusamente.
— Hei, Brow... Não é uma boa ideia! Acho que a garota está acompanhada. — alertou-me Julius.
Foi então que me dei conta do que estava prestes a fazer. Assim como Vicky, também agiria por impulso. Agora, mais do que nunca, entendia a maneira que Vicky se comportava comigo — por esse motivo, tentaria não recriminá-la mais.
Momentos depois, deparei-me com um cara puxando o anjo pelo braço. No mesmo instante, notei que o conhecia de algum lugar, porém, não me recordava de onde. De fato, saber quem era o mané era o que menos importava, pois só tinha olhos para aquela bela visão.
— Brow... Acho melhor zarparmos daqui. — disse Julius, um tanto quanto preocupado.
Fitei Julius, para, logo depois, procurar pelo anjo. No entanto, minha tentativa de encontrá-la foi em vão...
— Espero que não se importe que eu volte dirigindo, pois acho que você não está em condições! Vou chamar o pessoal... Isso inclui a Vicky também. — alertou-me do que estava prestes a fazer, colocando-me, em seguida, no banco de trás do Trovão.
E a música terminou, dando vez a um som atual sem sentido. Depois disso, nada mais vi! Apenas senti alguns tapas, um tanto quanto indelicados, sobre meu rosto e meus braços. Então, uma voz se fez ouvir:
— Feliz Dezesseis!
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